O Vice-Reitor Geral da PUC-Rio, Padre André Luís de Araújo participou, no último dia 29 de setembro de 2022, da mesa de abertura do I Colóquio de Humanidades Digitais da PUC-Rio. O Colóquio contou com mesas temáticas nas áreas de direito e regulação de novas tecnologias, subjetividades e regimes estéticos algorítmicos, métodos e metodologias de pesquisa em humanidades digitais e possibilidades de ação no contexto de práticas de coleta massiva de dados.
Confira abaixo a fala do Vice-Reitor Geral:
Bom dia a todos(as)!
Minha cordial saudação às Professoras Monica Herz e Monah Winograd, da Coordenação Geral do Laboratório de Humanidades Digitais da PUC-Rio; cumprimento, também, à Professora Gisele Birman Tonietto, Coordenadora de Projetos do Laboratório de Humanidades Digitais, e, ainda, à Professora Luísa Cruz Lobato, Coordenadora Acadêmica, bem como todos os envolvidos na organização deste I Colóquio de Humanidades Digitais. Manifesto, igualmente, minha alegria por poder estar aqui, nesta mesa de abertura, desejando que todos(as) os que aqui estão e participarão, presencial ou remotamente, sintam-se acolhidos(as) e bem-vindos(as) e que possam desfrutar e contribuir com os debates que serão propostos ao longo do dia, neste que, esperamos, será o primeiro de muitos colóquios realizados pelo Laboratório de Humanidades Digitais.
Nesse sentido, começo destacando a importância de trazer à cena cultural contemporânea as temáticas de cada mesa preparada. Iniciaremos pela discussão de aspectos regulatórios, jurídicos e éticos, quando nos referimos ao uso de tecnologias digitais no processamento e armazenamento de grandes volumes de dados, considerando-se os desafios que esse tipo de tecnologia apresenta para a democracia, mais ainda às vésperas deste grande pleito que vamos viver neste domingo e, também, nestes tempos de discussão da Lei Geral de Proteção de Dados. Saliento, igualmente, a relevância do debate em torno de diferentes metodologias de pesquisa, situando-nos na confluência entre as ciências humanas e sociais e a utilização das tecnologias digitais, envolvendo diversos aspectos, dentre os quais os qualitativos, os quantitativos e os artísticos. Além disso, é de extrema importância a reflexão em torno dos algoritmos e do modo como as tecnologias digitais contemporâneas traçam contornos para a nossa subjetividade humana, influenciando e condicionando, muitas vezes, nossas formas de ser, de agir, de pensar, de vivenciar hábitos e práticas, bem como nossas representações de mundo e compreensões ético-estéticas e culturais. Seremos, também, provocados a pensar em nossas vidas nas nossas cidades, com seus espaços públicos e privados cada vez mais automatizados e digitalizados, nossos costumes e nossas rotinas de processamento, em vista dos desdobramentos que possa haver na esfera de nossa atuação cidadã, a partir da discussão de nossos direitos e deveres, manifestações e mobilizações sociais, evidenciando reflexões que conduzam a possibilidades de contornar, subverter e produzir regimes alternativos, levando em conta as respectivas consequências políticas e regulatórias advindas daí.
Que não nos faltem, portanto, ocasiões para propor processos novos, acompanhá-los e avaliá-los[1], sobretudo porque dizem respeito à real incidência que têm na vida das pessoas e de todo um ecossistema. Que sejam projetos robustos e factíveis, no que podemos nomear como proposições reais e razoáveis, porque passam pela razoabilidade e nos fazem pensar na ética do cuidado: cuidado de si, cuidado dos outros, cuidado com os outros, cuidado do mundo, esta Casa Comum, como tem insistido a voz do Papa Francisco[2] ao se fazer ouvir em defesa da vida e de relações saudáveis de fraternidade e sociabilidade, de maneira mais objetiva, quando nos referimos a adoecimentos e circunscrições, em vez de fluidez e conexões que nos liguem, de fato, uns aos outros com grandes possibilidades de um bem maior e mais universal, disponível e ao alcance de um número cada vez mais crescente de indivíduos – quando vale dizer que grandes sonhos e grandes possibilidades precisam estar disponíveis para todos.
Por tudo isso, compreender a dinâmica de um laboratório como este que se propõe e se dispõe, não apenas num colóquio mas como razão de ser, a aproximar o termo humanidades, no plural mesmo, e o termo digitais, mais do que enriquecer-nos com uma nova categoria que provoca o pensamento e nossas posturas, para além do que poderia ser um adjetivo posposto ao primeiro termo, equivale a trazer para o debate o binômio humanidades digitais e desafia-nos à reflexão potente de um possível conceito, com toda carga semântica e implicações que possa ter: sobre a nossa humanidade e nossos modos de sermos humanos numa era digital, mas também porque nos leva a pensar na nossa área de humanidades e seus respectivos campos de atuação, considerando-se as novas tecnologias. A esse respeito, reitero o que dizia o filósofo Gilles Deleuze (1992), em seu texto Os intercessores, no livro “Conversações”[3], quando afirma a propósito de outro filósofo Henri Bergson: “[…] não basta dizer: os conceitos se movem. É preciso ainda construir conceitos capazes de movimentos intelectuais” (p.152). Deleuze afirma antes que o recorte proposto é novo, porque Bergson distingue percepção, afecção e ação como três espécies do movimento. No entanto, Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, já chamava nossa atenção a isso no século XVI quando propunha no título do seu livro: “Exercícios Espirituais para vencer-se a si mesmo e ordenar a própria vida sem se deixar determinar por nenhuma afeição desordenada” (EE 21)[4]. Trocando em miúdos e fazendo justiça aos termos afectos, perceptos e às ações aí envolvidas, nota-se que Bergson ou Deleuze e até mesmo Roland Barthes, quando se interessa no mesmo livro por Sade, Fourier e Loyola[5], todos eles gastam tinta em reflexões que já faziam parte da agenda da perspectiva inaciana.
Meu interesse aqui é apenas o de ressaltar a importância de que hoje, como continuará Deleuze, a filosofia, a arte e as ciências entrem em relações de ressonância mútua e em relações de troca, por razões intrínsecas, como veremos ao longo deste dia, a partir da contribuição de pesquisadores(as) que pretendem ser homens e mulheres para os demais e também homens e mulheres com os demais, como nos recordam os Padres Gerais da Companhia de Jesus, respectivamente, Pedro Arrupe e Peter Hans-Kolvenbach, para os quais temáticas desafiadoras como estas que temos diante de nós eram irrenunciáveis, do ponto de vista do bem mais universal, tão desejado por Santo Inácio de Loyola e de uma ecologia integral da pessoa humana e do seu entorno, considerando-se suas mais distintas dimensões, formas de pertença, realização e modos de crescimento e inter-relações.
Como vemos, o essencial são nossos intercessores, sem eles não há obra possível! (Cf. DELEUZE, 1992, p. 156). Precisamos de nossos intercessores para nos expressarmos. Deleuze ainda lembra que sempre trabalhamos em vários, mesmo quando isso não se vê. E mais ainda quando se trata de uma tarefa visível e, nesse texto que menciono, ele fará menção ao seu incansável companheiro: Félix Guattari. Sem sombra de dúvidas, todos temos nossos intercessores ou nossos amigos conceituais, como gosto de dizer[6], no interior de uma comunidade como esta e com todo sentido do ser comunitário que isso invoca, pensando em Jean-Luc Nancy, Peter Pal-Pélbart e outros[7], a partir dos lugares onde nos constituímos e (con)fabulamos, para usar termos discursivos importantes para o exercício que desenvolvemos em nossas epistemologias.
Enfim, evidenciam-se aqui temas, contextos e reflexões essenciais à comunidade universitária e para além dela, num encadeamento de posturas que diz respeito à Instituição que desejamos ser, com a finalidade de uma atuação democrática consciente, na perspectiva de uma cidadania plenamente realizável[8], quando se trata da justiça, dos direitos e dos deveres individuais e coletivos, expressos e assumidos academicamente pelas nossas práticas de ensino, pesquisa e extensão, visto que toda nossa atuação não pode renunciar a nenhum processo formativo.
É bom que estejamos muito conscientes de nossa incidência concreta e fecunda no tecido social com o qual lidamos, a partir das condições de enunciação que temos, atravessados que somos por inúmeras linhas de força, que podem e devem ser cartografadas num horizonte dialógico. “É preciso abrir as palavras, […] para que se liberem vetores…” (DELEUZE, 1992, p. 167). Isso é capaz de tornar ainda mais visíveis nossa identidade e nossa missão, como Pontifícia Universidade Católica, nesta cidade do Rio de Janeiro, confiada à Companhia de Jesus, na esteira de uma sólida tradição, que se atualiza na prática do discernimento, em variados níveis, considerando o ser humano e suas formas de ação e de participação, com vistas à equidade e a um desenvolvimento sustentável, quando tratamos de atitudes e meios concretos, fecundos e eficazes de transformações urgentes e necessárias.
E, por falar nisso, o Marco Referencial da PUC-Rio[9] propõe a todos os membros da comunidade educativa um tríplice compromisso que vamos renovando em nossas ações:
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- compromisso constante com a verdade, levado adiante pelas ações responsáveis desenvolvidas pelo ensino, pesquisa e extensão, em vista do desenvolvimento da criatividade e da análise crítica da realidade, à luz dos princípios cristãos;
- compromisso de vivência profunda da fraternidade, manifestada no relacionamento interpessoal; no diálogo, como modo de compreensão mútua e de superação das dificuldades; na sinceridade e simplicidade no agir; na primazia do bem comum sobre os interesses individuais; no desenvolvimento do espírito de solidariedade e da cooperação em lugar da competição; na sensibilidade às necessidades do outro e pela disponibilidade para servir;
- compromisso com o respeito aos ideais daqueles que, abertos para o transcendente, embora se reconheçam envolvidos com as realidades terrestres, são conscientes, contudo, de que não têm neste mundo morada permanente e devem viver como peregrinos da fé uma etapa transitória de plena realização humana, iluminada pela visão da esperança na vida futura.
Além disso, vem do próprio Félix Guattari, o intercessor por excelência de Gilles Deleuze, em seu texto: “Fudamentos ético-políticos da interdisciplinaridade”[10], publicado em 1992, pouco antes da morte de Guattari, vitimado por um infarto agudo do miocárdio, algumas advertências oportunas e que estão sendo levadas a cabo por esta iniciativa que ora começamos: “a complexidade dos objetos de pesquisa, no domínio das ciências humanas e do meio-ambiente, exige uma abordagem interdisciplinar” (GUATTARI, 1992, p. 19). Dito isso é bom que estejamos conscientes de que não basta eliminar as fronteiras entre as problemáticas e os modos de expressão presentes. Uma ecologia científica, dizia ele em tempos de Eco 92, nesta cidade do Rio de Janeiro, permanecerá impotente se não acarretar novos comportamentos sociais e políticos e se não provocar uma profunda transformação das mentalidades. Ao que ainda acrescenta: “A questão da interdisciplinaridade se desloca do domínio cognitivo para os domínios sociais, políticos, éticos e até mesmo estéticos” (p. 19). Isto porque, para além do que temos visto nos debates suscitados pela ecologia integral, hoje em dia: “[…] uma ecologia do visível está inseparavelmente ligada a uma ecologia do virtual, às problemáticas de escolhas individuais e coletivas, aos universos de valores em evidência ou em desaparecimento” (p. 19).
O exercício que nos propomos a fazer é, por isso mesmo, obrigado a se modificar permanentemente, revendo sua dimensão axiológica, ampliando nossos horizontes de pesquisa, “assumindo redes sociais cada vez mais numerosas” (p. 21) – dizia Guattari há exatos 30 anos! – sem implicar, entretanto, nesse movimento, uma perda de rigor, mas uma mudança de atitude em relação aos nossos interlocutores e até a nós mesmos e a nossas posturas…
Novas formas de vida doméstica, novas práticas de vizinhança, de cooperação e de solidariedade, de educação, de cultura e de esporte, de cuidados com crianças, idosos, deficientes – prossegue o autor (p. 22). Afinal, ainda não atingimos uma consciência coletiva de que os meios de mudar a vida e criar um novo estilo de atividade, novos valores, estão ao nosso alcance e dependem em larga escala da orientação do nosso trabalho e da nossa pesquisa, mas também do nosso modo de ser e de proceder. Isto é: a elaboração cognitiva é inseparável do engajamento humano e da escolha de valores que todo esse processo implica. É evidente que todo e qualquer processo de mudança, qualquer emulação coletiva só podem ter origem, quando se inscrevem num profundo desejo de transformação da nossa condição humana no planeta – arremata Guattari (p. 22).
Desse modo, as questões levantadas e a serem discutidas por nós são interdisciplinares, como dizia ele, porque transdisciplinares e pluridisciplinares, visto que problematizam questões locais, a partir de horizontes que consideram o conjunto da vida e também relações internacionais. Sobretudo quando propõem perspectivas emancipatórias dispostas a romper com colonialismos e padrões, em vista de uma transversalidade entre a ciência, o social, o estético e o político, pensando em intervenções mais próximas dos ecossistemas da vida cotidiana, mais ainda quando se trata de culturas ameaçadas, assim como outras formas de arte e de sensibilidade. “A ciência não pode se contentar em estudar passivamente estas evoluções. Ela tem obrigação de intervir e de se engajar” (p. 23).
Novos olhares, novas sensibilidades, novas possibilidades, implicam transformações geopolíticas, sociais e econômicas. No entanto, iniciativas como estas não nascem espontaneamente. Precisam ser provocadas, retirar-nos de nossos lugares confortáveis de enunciação, para produzirmos agenciamentos coletivos, ainda que sob riscos, promovendo a fuga de esquemas pré-estabelecidos, pois não existe uma pedagogia geral – dirá Guattari. E acrescenta: “teremos mais a ganhar ao nos referirmos neste depoimento ao processo de criação estética do que às visões padronizadas, planificadas, burocratizadas que reinam frequentemente nos centros de pesquisas científicas, nos laboratórios e nas universidades” (p. 25). Termino, deixando a nós todos uma pergunta: nesse percurso proposto, onde nos reconhecemos? Cabe um bom exame de nossas humanidades em interfaces digitais. Que rosto e comportamentos revelam de nós? Fernando Pessoa terá razão: “A realidade sempre é mais ou menos do que nós queremos. Só nós somos iguais a nós próprios”[11]?! Que espaço nossos afetos e perceptos deixam a nossa liberdade? – diria ainda Santo Inácio de Loyola.
Avancemos com toda coragem possível! Obrigado a todos! Bom Colóquio!
Padre André Luís de Araújo, Vice-Reitor Geral da PUC-Rio.
[1] Cf. FRANCISCO, Papa. Evangelii gaudium (223). Exortação apostólica pós-sinodal.
[2] Cf. FRANCISCO, Papa. Laudato Si’. Carta Encíclica sobre o cuidado da Casa Comum.
[3] DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
[4] SANTO INÁCIO DE LOYOLA. Exercícios Espirituais. São Paulo: Loyola, 2006 (3ª. edição).
[5] BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[6] Sobre o conceito de amizade conceitual, ver: ARAÚJO, André Luís de. Eu existo pelo nome que te dei. Ana C. por Bernardo Carvalho. 2009. 212f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.
[7] Cf. PELBART, Peter Pál Pelbart. Vida Capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2018.
[8] Cf. FRANCISCO, Papa. Fratelli tutti (131). Carta Encíclica sobre a fraternidade e a amizade social.
[9] Cf. Marco Referencial PUC-Rio (14).
[10] Cf. GUATTARI, Félix. “Fundamentos Ético-Políticos da Interdisciplinaridade”. In: Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 108: 9/18, jan-mar, 1992, p. 19-25.
[11] Cf. PESSOA, Fernando. Odes de Ricardo Reis. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).