A segunda mesa do I Colóquio de Humanidades Digitais contou com moderação da Profa. Luisa Lobato, a coordenadora acadêmica do Laboratório de Humanidades Digitais. Os participantes foram a Profa. Anna Leander (Geneva Graduate Institute e PUC-Rio), o Prof. Eric Brasil (UNILAB), o Prof. Marcelo Alves (PUC-Rio) e a Profa. Adriana Braga (PUC-Rio). Seguindo a proposta da mesa, os professores iniciaram suas falas abordando  perspectivas metodológicas nas Humanidades Digitais, em seguida explorando como novas metodologias transformam formas de produzir conhecimento atualmente. 

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A Profa. Anna Leander abriu a mesa discutindo o que Jacques Rancière, filósofo francês que trabalha na interseção entre estética e cultura, chama de emergência de um regime estético/digital e as implicações metodológicas que surgem a partir da ascensão desse novo regime. Para a Profa. Leander, existem 3 implicações ético-metodológicas principais:

  1. A primeira é uma transformação do sujeito cientista-pesquisador, que está conectada especialmente à ideia de um inconsciente digital e com a emergência do estético como uma nova forma de pensar, seguindo Rancière. Começa a se pensar no sujeito como imbricado pelas tecnologias digitais, de maneira que é impossível separá-los, e isso influencia diretamente as maneiras de se estruturar o pensamento e como os processos de subjetivação ocorrem. 
  2. De forma análoga, o conhecimento e sua produção não são mais entendidos como processos lineares, mas sim, como uma colagem. Isso implica, é claro, na necessidade de abordagens interdisciplinares, com a contribuição de diferentes pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento. A ciência passa a ser produzida por uma assembleia de indivíduos, e também por instâncias fora da academia. 
  3. Por último, a Profa. Leander chamou atenção para o lugar do cuidado na pesquisa com dados digitais. É importante, segundo ela, se importar com a pesquisa e com a obtenção dos dados utilizados. Ter esse cuidado com a produção de conhecimento torna-se crucial em pesquisas complexas que têm o aspecto digital como central.

Portanto, ao realizar pesquisas no âmbito das Humanidades Digitais, é importante levar em consideração as transformações que ocorrem na própria estrutura da produção do conhecimento decorrentes das mudanças levadas adiante pelo novo paradigma digital.

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Em seguida, a fala do Prof. Eric Brasil teve como objetivo relatar sua experiência como historiador, abordando especialmente pesquisas com arquivos, dando destaque ao papel dos dados digitalizados. O Prof. Eric contou um pouco da sua experiência com pesquisa na Hemeroteca Digital Brasileira, que abriga uma enorme coleção de jornais e revistas digitalizados, chamando a atenção para a importância desse recurso. Levando em consideração seu trabalho com a Hemeroteca, o Prof. Eric levantou questões metodológicas e teóricas que são relevantes não apenas para a História, mas também para as Humanidades Digitais no geral.

Chamando atenção para os limites e pressupostos embutidos nas interfaces dos programas utilizados nas pesquisas, o Prof. Eric ressaltou que na época de lançamento da Hemeroteca (no ano de 2012), havia a preocupação do mecanismo de busca gerar resultados fragmentados e que não seriam representativos da pesquisa, justamente por conta do formato disponibilizado pela plataforma. A partir de tal discussão, o Prof. Eric levantou uma série de questões importantes, que devem ser levadas em consideração pelos pesquisadores em Humanidades Digitais, iniciantes ou já mais experientes. São elas:

  1. Os dados da pesquisa são digitais ou digitalizados?
  2. Quais as diferenças entre os dados nativos digitais e os dados digitalizados? O processo de digitalização afetou o artefato? Quais os formatos em que esses dados foram disponibilizados?
  3. Como são feitas as interfaces gráficas de usuários através das quais é possível acessar esses dados? Como é possível realizar as pesquisas nas interfaces – por texto, por imagens, quais campos devem ser preenchidos?

O Prof. Eric ressaltou que todas essas questões influenciam as perguntas e análises que podem ser realizadas no decorrer das pesquisas. Dessa forma, as restrições materiais que são resultado dos limites impostos aos mecanismos de busca e de acesso aos materiais têm a capacidade de influenciar a condução da pesquisa. Torna-se importante levar em consideração as decisões políticas tomadas no momento da construção da plataforma, que será a mediadora entre a pesquisa e os dados coletados.

As interfaces, dessa forma, não são veículos transparentes, mas sim são elos numa cadeia de operações mediadas. As tecnologias não são neutras, e todos os suportes técnico-metodológicos têm seus vieses, sendo inundados de teoria.

Encerrando sua fala, o Prof. Eric levantou questões finais que são centrais para a pesquisa em arquivos digitais e digitalizados:

  1. É importante ter cuidado maior com a avaliação crítica das interfaces – inclusive com os códigos que as compõem. Este é um trabalho interdisciplinar, para além dos muros da academia.
  2. De forma análoga, é necessário entender a construção dessas interfaces, buscando maior transparência. Por exemplo, usar programas de código aberto, para entender o que está por trás da interface e quais as decisões embutidas naquele instrumento. E a partir daí elaborar metodologias que levem tal fato em consideração para a execução de uma pesquisa mais robusta.
  3. Transparência metodológica é essencial, e assim é igualmente importante documentar os passos com cautela e também ter cuidado com a produção de metadados da pesquisa. Também é necessário explicitar os motivos por trás das escolhas das ferramentas e sempre ter em mente a reprodutibilidade da pesquisa são passos importantes para garantir uma pesquisa de qualidade.

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O Prof. Marcelo Alves, por sua vez, falou sobre sua experiência estudando comunicação política e desinformação nas redes sociais. Compartilhando sua trajetória, ele contou que seu percurso passou pelas ciências sociais computacionais, o que o levou a aprender programação. 

Por estudar redes sociais, o Prof. Marcelo chamou atenção para o fato de que as escolhas metodológicas que constroem e sustentam essas ferramentas são muitas vezes caixas pretas pouco transparentes, as quais os pesquisadores não têm acesso. É justamente essa falta de transparência que contribuem para a composição do que o Prof. Marcelo chamou de infraestruturas da desinformação, pois promove a propagação de informações falsas nesses tipos de plataforma. Também é de grande importância para essa linha de investigação as questões de economia política e financiamento dessas plataformas, para compreender de forma mais total como essas infraestruturas são montadas e mantidas.

A título de exemplo, o Prof. Marcelo chamou atenção para pesquisas realizadas que apontam para o fato que o ordenamento dos resultados na busca do Google afeta de forma não-marginal a tomada de decisão das pessoas em relação ao voto, o que potencialmente pode decidir eleições muito concorridas. Portanto, fica claro que a forma pela qual as plataformas são estruturadas têm influência marcante nos resultados da pesquisa acadêmica e também no comportamento das pessoas que utilizam essas plataformas. 

Parte da pesquisa do Prof. Marcelo está relacionada com a atuação do YouTube na classificação de vídeos como (des)informativos e também com o monitoramento do cumprimento das diretrizes do próprio YouTube em relação a moderação de criação de conteúdo problemático, especialmente em referência a conteúdos que questionam a legitimidade das eleições. Por isso é imprescindível a compreensão das regras e códigos que sustentam essas plataformas e permitem que elas continuem operando.

Dessa forma, a pesquisa do Prof. Marcelo usa, em conjunto, métodos digitais e das ciências sociais computacionais. Ele ressaltou que, devido ao volume de dados, é indispensável fazer uso dessas ferramentas para uma análise robusta e representativa, mas é também importante pensar nas limitações e vieses das ferramentas.

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Por fim, houve a fala da Profa. Adriana Braga, que tratou da netnografia como metodologia em estudos de Humanidades Digitais. Em sua exposição, a Profa. Adriana traçou um histórico da etnografia como método, chamando atenção para o fato de que é necessário, para realizar trabalho netnográfico robusto, ter domínio das discussões metodológicas sobre etnografia, inclusive seus pressupostos teóricos. Também é útil ter contato interdisciplinar com pesquisadores que realizam etnografia fora dos ambientes digitais.

A Profa. Adriana encara a netnografia a partir de uma abordagem naturalista; ou seja, que ocorre naturalmente, sem qualquer estímulo por parte da pessoa que conduz a pesquisa. De forma análoga à etnografia conduzida em outros ambientes que não o digital, a netnografia tem como objetivo analisar interpretativamente o fluxo dos discursos, explorando a teia de sentidos das interações, que são resultado dos relatos capturados pelas pessoas pesquisadoras. Importante ter em mente que esse relato é sempre incompleto e deve-se levar esse fato em consideração enquanto se conduz a pesquisa.

A netnografia como método tem sua origem nas discussões realizadas por Kozinets, que advém do marketing, utilizando especialmente informações publicamente disponíveis na internet, os logfiles. Esses estudos tinham como objetivo entender necessidades, desejos e influências no momento da tomada de decisão entre grupos relevantes de consumidores, possuindo viés voltado para o consumo e a lógica de mercado. Esta forma de se abordar a netnografia acaba por perder de vista uma parcela relevante das interações em ambientes digitais. Por isso, a Profa. Adriana chamou atenção para uma abordagem netnográfica que enfatize o “etno”, o pertencimento a um grupo. Dar relevância central para os dados publicamente disponíveis, os logfiles, prejudica o entendimento de processos fluidos, que se estendem no tempo.

Para a Profa, Adriana, é imprescindível ampliar a exploração naturalista de fenômenos da/na internet. Importante ter em mente o rigor do método, para não batizar erroneamente uma pesquisa como netnográfica. Para demonstrar como se realiza uma pesquisa netnográfica, a Profa. Adriana compartilhou o aparato metodológico que desenvolveu para uma de suas pesquisas: há, primeiro, a seleção do ambiente a se estudar (redes sociais, portais de notícias) e, a partir daí, o que se irá observar (por exemplo, os comentários). Em seguida, tem-se as fontes de dados, que podem ser o conjunto de comentários, entrevistas, observação participante em eventos presenciais, etc. O diário de campo é de extrema importância para a prática etnográfica mesmo que na digital.  

Por fim, a Profa. Adriana enfatizou que as TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação) redefinem o que entendemos sobre política, sociedade, e sobre como viver em sociedade, e por isso a pesquisa netnográfica é de grande relevância. A netnografia é importante para as pesquisas em Humanidades Digitais por permitir o estudo de fenômenos que se estendem no tempo, investigando como se dá a formação e manutenção de comunidades na internet.

Todas as mesas do I Colóquio de Humanidades Digitais da PUC-Rio, inclusive esta, estão disponíveis na plataforma ECOA da Universidade. Aqueles que assistem às mesas integralmente têm direito a um certificado, emitido pela plataforma.