A quarta e última mesa do I Colóquio de Humanidades Digitais contou com moderação da Profa. Luisa Lobato, coordenadora acadêmica do Laboratório de Humanidades Digitais da PUC-Rio. Os participantes foram a Profa. Isabel Rocha de Siqueira (PUC-Rio), e Prof. Jess Reia (University of Virginia). A mesa debateu a digitalização da vida cotidiana e suas consequências políticas, regulatórias e para a mobilização social. Também discutiu as possibilidades de contornar, subverter e produzir regimes alternativos, por exemplo, com foco na ética do cuidado.

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Na primeira fala da mesa, ê professore Jess Reia iniciou as discussões com um panorama do ecossistema de cidades inteligentes no Brasil. Segundo ê professore, é fundamental tratar desse assunto justamente pois trata-se de uma agenda de pesquisa tanto no setor público quanto privado, levantando o importante questionamento sobre onde o conhecimento sobre cidades inteligentes está sendo desenvolvido e no que estamos pensando quando falamos de uma inteligência urbana. O que os rankings das cidades mais inteligentes nos informam sobre a agenda? Quem está pautando as linhas de pesquisa e políticas públicas? Qual a relação entre os atores estatais e não-estatais?

No caso brasileiro, Reia afirmou que apesar de inicialmente pensar-se nas grandes empresas como motor principal da produção de tecnologia de cidades inteligentes, atores como a Cisco e IBM, por exemplo, têm dado espaço para atores menores e locais vencendo boa parte das licitações. Essa conclusão foi resultado de um processo de pesquisa de Reia que se preocupou em acessar espaços frequentemente inacessíveis para a academia e sociedade civil, como as feiras e exposições de tecnologia. Em feiras de smart cities em Curitiba e em São Paulo, por exemplo, ês pesquisadores se depararam com salas VIPs restritas ao setor público e privado, novamente levantando o questionamento acerca da origem das narrativas e conhecimentos que sustentam a agenda.

Nesses contextos, prefeitos e representantes municipais recebem prêmios que revelam com clareza os rankings de competição que vêm levando cidades a comprar de empresas privadas de consultoria pacotes de modernização inteligente que estão afetando diretamente políticas públicas urbanas e até mesmo legislação municipal. Para ê professore, a ausência e dificuldade de participação da sociedade civil nesses processos são preocupantes.

Em uma nota positiva, Jess Reia destaca que, além do Brasil pautar discussões internacionais em políticas digitais há décadas, um movimento regional forte vem se fortalecendo na América Latina. Este movimento encontrou na cooperação em redes e coalizões uma forma de tentar conter e reduzir danos presentes na agenda de cidades inteligentes (coalizão de direitos na rede, por exemplo). Essas campanhas têm sido extremamente importantes no sentido de preservar direitos à privacidade e à cidade de cidadãos.

Concluindo, Reia afirmou que para garantir um futuro mais positivo, onde as cidades sejam mais inclusivas e igualitárias, é preciso:

  1. criar espaços para estudo e ação coletiva;
  2. garantir colaborações multissetoriais e transversais;
  3. garantir a entrada e permanência nas tomadas de decisão;
  4. repensar o lugar da ciência de dados em relação às cidades.

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A professora Isabel Rocha de Siqueira deu seguimento à mesa propondo uma reflexão sobre o espaço da pedagogia, do aprendizado, e de espaços democráticos em um mundo altamente polarizado e dataficado. A fala partiu de uma agenda de pesquisa sendo iniciada por Rocha de Siqueira a partir de experiências pedagógicas pessoais com vistas a pensar que formas de intervenção para o aprendizado coletivo podemos promover de forma a lidar com os impactos do digital e da dataficação sobre as relações sociais e sobre a democracia.

Em um contexto de aumento radical no número de casos de violência política, a professora questionou: O que significa cuidar analogicamente de outros e outras existências nas situações extremas de polarização política e ceticismo frente à ciência que vivemos agora, e o que está impedindo o cuidado de funcionar em um contexto digital? Para a professora, os diagnósticos sobre o cenário político mostram que temos um não-diálogo nas plataformas digitais que se baseiam numa estruturação da diferença pela lógica violenta da oposição que é ensinada por meio das próprias mídias. Nesse contexto conseguimos acessar a informação que queremos, quando as queremos. Essas trocas acabam gerando diferenças aparentemente categóricas e fundamentais, nos fazendo perder os espaços de debate como espaços de aprendizado e articulação. A proposta de Rocha de Siqueira é pensar e entender que “arcos narrativos” estão sendo perdidos ou comprimidos em excesso nesse processo de dataficação. As verdades universais tornam-se muito fáceis; as categorias substituem histórias complexas; e, se as categorias já estão prontas previamente, não precisamos de fato conhecer as pessoas, conduzindo as relações por meio de atalhos. 

A ideia de dado-cuidado (data-caring) proposta pela professora surge em oposição a esse contexto, com o objetivo de descomprimir os arcos narrativos. O conceito surgiu como uma contraproposta que envolve a criação de ferramentas pedagógicas que recuperem o falar e ouvir como habilidades que podem ser praticadas. Trata-se de uma intervenção ético-política que visa alongar os arcos narrativos. Nesse sentido, Rocha de Siqueira apresenta uma proposta tríplice para se pensar a relação entre dados e cuidado.

  •  Cuidado a respeito dos dados (caring about data)
    • Preocupação com questões como o colonialismo de dados e a formação de bolhas sociais
  • Cuidado com dados (caring with data)
    • Propostas de geração cidadã de dados
  • Dataficando com cuidado (datafying with care)
    • Pensar em dataficar de outras formas

Segundo a professora, essa perspectiva revela iniciativas já existentes que visam conciliar o problema do digital com as demandas da democracia, como a moderação de conteúdo, como respostas bem vindas porém instrumentais. Enquanto proposta ético-política, a noção de dado-cuidado visa responder à necessidade de se criar novas abordagens pedagógicas que ensinem a cuidar e dialogar nesse novo contexto.

Todas as mesas do I Colóquio de Humanidades Digitais da PUC-Rio, inclusive esta, estão disponíveis na plataforma ECOA da Universidade. Aqueles que assistem às mesas integralmente têm direito a um certificado, emitido pela plataforma.